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Floresta assustador

I

   Samuel escorria na direção do sono. O dia de trabalho na loja de antiguidades havia sido longo. Lá fora, a ventania lançava as gotas da chuva contra a janela, criando uma suave canção de ninar.

  Quando molhava os pés no primeiro sonho da noite, algo o acordou. Foi sua mãe, que separava panelas na cozinha. Samuel não se moveu. Não tinha problema de trocar o som da chuva pelo som dos legumes chiando com o calor da frigideira. Ambos eram música, e ambos lembravam-no de algo bom. Em algum lugar no fundo de sua mente não entendia o motivo da mãe estar cozinhando tão tarde da noite, mas o corpo estava pesado, e o sono o puxava de volta. Sem perceber, sorriu. Os sons da mãe na cozinha eram os sons de sua infância, e o carregavam para uma época há muito esquecida.

  Súbito, abriu os olhos, completamente desperto. O coração acelerou. Na cozinha, sua mãe começou a cantarolar uma canção familiar.

  Sua mãe, que estava morta há anos.

  Levantou da cama devagar. Os pensamentos estavam embaralhados. Não sabia se aquilo era um sonho, ou se toda a sua vida até ali fora um sonho. Um trovão cruzou o céu e iluminou o quarto por um instante. A escuridão que seguiu pareceu ainda mais densa. Abriu a porta. A canção que sua mãe cantarolava ficou mais nítida, acompanhada pelo som da faca que descia ritmada contra a tábua de carnes.

  Samuel ignorou o interruptor no corredor e seguiu andando na escuridão. Os pés descalços o levaram até a escada. Desceu com um tremendo esforço para manter o silêncio. Não queria que a sua mãe o ouvisse. Sentia que tudo aquilo estava por um fio; tudo o que fazia tinha a chance de por tudo a perder, e ele a perderia mais uma vez.

  Outro trovão retumbou, e o raio iluminou sua loja de antiguidades no andar de baixo. Bonecas de porcelana pareciam todas estarem viradas em uma só direção: a da cozinha, como se ouvissem sua mãe cantar.

  Samuel desceu o último degrau e aproximou-se da cozinha. Pelos sons que fazia, sua mãe parecia descascar cenouras. Era estranho que estivesse fazendo tudo aquilo no escuro. Espiou pela esquina com todo o cuidado. Imediatamente, todos os sons cessaram. Ao invés de legumes na frigideira, o som era o da chuva que o vento soprava para dentro através da janela aberta. O lugar estava vazio, e esse vazio lembrou-o da própria solidão.

  Andou até a janela para fechá-la. Surpreendeu-se com o envelope sobre a pia. Era branco, com detalhes finos pintados a mão, e selado à moda antiga, com cera vermelha.

  Samuel nunca tinha visto nada parecido com aquilo.

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