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Floresta assustador

III

    Em seu sonho, Edward havia conseguido tirar a maldita foto. Estava há três semanas vigiando aquele idiota, sabia que ele traía a esposa, tinha todas as evidências, mas aquele papel fotográfico nas suas mãos era a prova conclusiva, a última peça do quebra-cabeças. A imagem ia ganhando cor aos poucos, abandonando o branco desbotado. Balançou a fotografia para acelerar a secagem. Edward sorria sem perceber. Finalmente deixaria de receber as ligações diárias da senhora Hammington exigindo urgência.

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   Quando a imagem ganhou um pouco mais de nitidez, Edward notou que estava escura - mais escura do que deveria. Teria errado a exposição da lente? Esperou um pouco mais, até a foto tornar-se visível. O que viu não foi o marido promíscuo da senhora Hammington, mas sim o seu próprio escritório, em uma foto tirada da sua própria mesa de trabalho. A luz vermelha do laboratório dificultava a visão. Na fotografia as luzes do seu escritório estavam apagadas, exceto a luz da luminária sobre a mesa. Havia algo na escuridão. Um vulto, muito parecido com os que tinha visto naquele dia fatídico, anos atrás. Os olhos brancos se abriram. No breu do escritório, na folha de papel fotográfico, o vulto olhava na sua direção.

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    Edward acordou com a cabeça latejando. Tinha caído no sono novamente sobre a mesa de trabalho. Ergueu o rosto e sentiu um fliete de saliva acompanhar o movimento. Esperava que não tivesse estragado os relatórios que usou como travesseiro.

    A única fonte de luz no escritório era a sua luminária acesa. O cenário era idêntico ao do sonho do qual acabava de acordar. Edward apertou os olhos e fixou-se na escuridão do cômodo. De fato, como no sonho, havia algo no escritório com ele. Estava bem ali no limiar da penumbra, onde a luz da luminária acabava e a escuridão começava. Uma sombra no escuro, perfeitamente imóvel, como uma fotografia mal revelada. Se forçasse a imaginação, podia determinar braços e pernas, e dedos.

 

    Edward coçou os olhos. O movimento lembrou-o da ressaca lancinante. Abriu uma gaveta na escrivaninha e encontrou o cantil de aço, sentindo o resto de whisky dançar no fundo. Então, sem pensar duas vezes, jogou a coisa na lixeira. Já tinha feito aquilo mil outras vezes. Sempre que achava ter atingido o fundo do poço, jogava o cantil fora, e sempre que as coisas iam bem, resgatava-o do lixo. Dormir sobre a mesa de trabalho e ter visões de aparições no escuro estavam inclusos no seu amplo conceito de fundo do poço.

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    Olhou adiante novamente. Achou que a mera realização de que tudo aquilo era consequência do cansaço e da bebida seria o suficiente para desfazer a ilusão, mas o vulto ainda estava ali, imóvel, pequeno, como uma criança surpreendida durante uma travessura.

    A princípio descartou a coisa como um jogo de imagens criado pela pouca iluminação - com toques da ressaca como a cereja do bolo. Porém, quanto mais olhava para a coisa, mais achava que havia algo de errado. Estava fixado na imagem. Sem tirar os olhos dela, alcançou a fiel Canon AE-1 com uma das mãos. Era uma máquina antiga, mas tão costumeira que não precisava desviar o olhar para ajustá-la. Clicou. O obturador rangeu. A foto estava tirada.

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   Saltou até o interruptor e acendeu a luz. Nenhuma criatura do além. Nenhum evento paranormal. Apenas seu velho escritório, com o estalar constante das tubulações de aquecimento que remontavam a era Vitoriana, os quadros baratos pendurados nas paredes, e o cabideiro ao lado da porta, sempre segurando ao menos um dos seus dois sobretudos.

   Edward não sabia se estava aliviado ou frustrado. Há anos buscava por alguma experiência paranormal, mas nunca havia encontrado nada que o satisfizesse. Nada que respondesse suas perguntas. Tudo o que via eram sombras projetadas pelo whisky.

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    Voltou a se sentar, e dessa vez sentiu uma vontade imediata de terminar de beber o whisky no cantil. Olhou para a lixeira. Sentiu-se observado, com a certeza de que alguém seguia seus movimentos com os olhos. Olhou para frente novamente. A única outra cadeira no lugar, reservada para os seus clientes, julgava-o, vazia.

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     "O que foi?"

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    A cadeira escolheu manter o silêncio debochado.

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    Foi só então que Edward notou o envelope no chão. Era branco, e estava selado com cera vermelha. Suas cores o destacavam no chão de tábuas escuras, tanto que não entendeu como não o havia notado antes. Andou até ele. O chão rangeu com os seus passos - os sons de um escritório centenário. Pegou o envelope. Os detalhes dourados no papel pareciam feitos à mão. Seu nome estava escrito no verso.

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"A Edward Basser,

um convite inoportuno"

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    Procurou nas gavetas um abridor de cartas - sabia que tinha uma tranqueira daquelas em algum lugar - mas não encontrou.

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    Decidiu abrir o envelope com as próprias mãos.

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