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Floresta assustador

IV

    Cory acelerou e ultrapassou o último sinal vermelho. A chuva lavava o sangue no seu corpo. A água escorria vermelha e encontrava o cano de escape, quente como as chamas do inferno, então virava vapor e era levada pelo vento. Enquanto mantinha o punho girado no acelerador da moto, Cory tentou ligar mais uma vez para Isaac. O telefone tocou e tocou e tocou, mas ninguém atendeu. Precisava de ajuda. Queria que aquele vento que batia em seu rosto levasse embora também a sua angústia. Mas não importava o quanto acelerasse, os pensamentos continuavam lá, misturados aos poucos fragmentos de memória que permaneciam, como se um demônio o atormentasse e o permitisse lembrar apenas o suficiente para que o terror tomasse conta de sua alma.

    Skye, seu sorriso, o vestido branco dançando com o vento.

    Todas aquelas pessoas mortas. As máscaras cobrindo os rostos defuntos.

    A pele da gravidez de Skye no seu rosto, o bebê chutando o veludo.

    O sangue que impregnava tudo. O chão, as paredes, suas mãos. Tudo.

    A platéia morta gritando o seu nome. Cory, The Beast. The beast. The beast.

    Cory gritou, mas a ventania e a chuva engoliram a sua voz. Pouco tempo depois, chegou na garagem que chamava de lar.

    Demorou para encontrar as chaves: as mãos tremiam. Abriu a porta de correr, empurrou a moto para dentro, e fechou o lugar. Apertou o interruptor mas a luz não respondeu. Lembrou-se que haviam cortado a energia por falta de pagamento.  Arrastou o corpo encharcado até um canto onde a luz da lua se fazia notar desbotada. A anatomia musculosa e rígida não condizia com o caminhar zumbificado. Escorreu o corpo pela parede e sentou-se no chão. Pegou o celular, querendo encontrar o contato de Skye, mas a água havia danificado a tela touchscreen de alguma forma e agora os gestos não funcionavam.

    Chorou. Os soluços o ninaram devagar, até cair em um sono profundo.

    Acordou com o toque do telefone. No aparelho, Skye sorria para ele, exatamente como a eternizou naquela foto tirada há três anos. Atendeu.

    "Por quê você continua me ligando?", falou a voz de Skye. Cory não soube responder. Estava feliz apenas de ouvi-la.

    "Cory?"

    "Eu..."

    "Você não fez merda de novo, fez?"

    "Não sei. Acho que não..."

    Tudo estava acontecendo rápido demais. Skye havia desaparecido há meses. Ele a procurou em cada canto de Londres, cada clube e hotel. Pensou no pior e questionou a polícia. Buscou seu corpo nos necrotérios. Nada. E agora ela sorria para ele na palma de sua mão.

    A voz de Skye, porém, não sorria como na foto.

    "Cory, quer saber? Já chega. Eu vou aí agora buscar o Simon".

    "Simon?"

    "Seu filho, Cory. Meu filho. Toma jeito, se recompõe. Toma um banho gelado. E arruma o Simon. Chego aí em dez minutos".

    "Meu... filho...?"

    Então os rumores eram verdade. Skye estava grávida antes de desaparecer. Mas por quê ele não se lembrava de nada?

    "Cory... o Simon está aí com você, não está? Cory?"

    A voz de Skye tornou-se um eco distante. Ele ainda digeria a recém-descoberta paternidade. Nas janelas altas da garagem a noite persistia, mas a chuva havia cessado. Havia dormido poucas horas ou muitos dias?

    Notou o lodo no chão logo a frente. Apesar da pouca luz, a lua revelou que eram pegadas. Suas pegadas. Ele não lembrava delas. Não lembrava de muita coisa ultimamente.

    "Cory? Onde está meu filho, Cory? Abre a boca, sua besta. Seu animal. Cadê meu filho?"

    Ele deixou Skye no chão. Sua voz era agora como uma lembrança da qual não queria recordar. Levantou-se. O corpo todo doía, especialmente as pernas e o peito, que gritavam. Seguiu as pegadas. O rastro de lama o levou até a saída dos fundos da garagem, uma porta simples de metal que abria para o campo de futebol comunitário. Uma pá enlameada descansava na parede ao lado. Cory girou a maçaneta. A porta rangeu.

    Poucos passos adiante, no gramado, viu um pequeno monte de terra, como se alguém houvesse enterrado ali um animal de estimação. Ou uma criança.

    Adrenalina. Cory esqueceu da pá e jogou-se sobre o monte de terra, cavando com as mãos o solo ainda fofo e molhado. Ainda conseguia ouvir a voz de Skye perguntando pelo filho, ecoando em sua mente naquele tom digital filtrado pelo auto-falante do telefone. Sentiu pedras e raízes machucarem suas mãos, mas a dor apenas o fez cavar com mais afinco. Até que encontrou.

   Não uma criança; não o seu filho. Não um animal de estimação. Mas um envelope intocado pela terra, perfeitamente branco, com detalhes dourados, selado com cera vermelha.

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